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  • linnea axelsson

    “NATURE’S LAY IDIOT”1
    o lamento da concha

    Fosse eu pérola cintilante eu lhes diria
    que vocês humanos existem porque a terra
    assim como o caule bambo tem suas pétalas
    quis desenvolver uma linguagem e ser cantada.

    Fosse eu mais que tudo dura e fria diria que a linguagem
    vocês a desenvolveram para se virar melhor:
    poder trocar coisas entre si
    fazer negócios e fofocar.

    É simplesmente prático
    poder dizer: Não desça dessa árvore
    senão você pode ser comido!

    Esse lado meu pode ser rude
    e é verdade que ele não é maleável
    que me mantenho em minha postura.

    Ao mesmo tempo pareço uma carne rosa tão refrescante
    pareço uma boca e um lábio
    há algo em mim que não mantém a forma
    que não quer fixar os pensamentos
    em um quadradinho fechado.

    Porém me lembro do seguinte:
    Vocês aprendiam a criar. Vocês tinham consciência.
    Para que a terra pudesse se ver a si mesma e
    se transformar em seu próprio olhar.
    Certamente vocês muitas vezes eram bons em se entender.
    Ao mesmo tempo: tão ruins eram em escutar
    sobre o que falavam seus poemas –
    amor
    morte.

    Vocês tinham a linguagem.
    Vocês aprenderam a desfrutar.
    Vocês aprenderam até (pois é)
    a manter seus afazeres eróticos
    dentro de certas formas e não
    como os outros animais meio em qualquer lugar.

    Mesmo assim agora lamento
    eu que no meu íntimo ainda me preencho de seus sussurros
    que vocês
    e através de vocês a terra
    aprenderam a maior das artes
    pode-se dizer até
    que vocês se ergueram de sua linearidade fúnebre
    e se tornaram cíclicos como as árvores e as plantas
    quando depositaram sua espiritualidade na linguagem.
    Mas mesmo assim. Com que frequência não seduziram
    com a arte do amor que aprenderam
    um espelho
    com palavras falsas. 

    ◾

    “NATURE’S LAY IDIOT”
    havssnäckans klagan

    Vore jag skimrande pärlemor skulle jag säga
    att ni människor blev till för att jorden
    så som den rangliga stjälken har sina kronblad
    ville utveckla ett språk och besjungas.

    Vore jag mest bara hård och sval sa jag att språket
    det utvecklade ni för att klara er bättre:
    kunna byta saker med varandra
    göra affärer och skvallra.

    Det är helt enkelt praktiskt
    att kunna säga: Stanna här uppe i trädet
    annars blir du kanske uppäten!

    Denna sida av mig må vara krass
    och det är sant att den inte är formbar
    att jag står fast vid min hållning.

    Samtidigt liknar jag ju så läskande rosa kött
    liknar en mun och en läpp
    det finns något i mig som inte håller formen
    som inte vill nagla fast tankarna
    på en bestämd liten plätt.

    Dock minns jag följande:
    Ni lärde er skapa. Ni hade medvetande.
    Så att jorden kunde se sig själv och
    förvandla sig själv i sin egen blick.
    Säkert var ni ofta bra på att förstå er själva.
    Samtidigt: så dåliga ni var på att höra
    vad era dikter handlade om –
    kärlek
    död.

    Ni hade språket.
    Ni lärde er njuta.
    Ni lärde er till och med (nåja)
    att sköta era erotiska förehavanden
    under vissa former och inte som
    de andra djuren lite varstans.

    Ändå begråter jag nu
    jag som i mitt inre ännu uppfylls av ert sus
    att ni
    och genom er jorden
    lärde den högsta av konster
    man kan till och med säga
    att ni reste er ur er sorgbundna linjäritet
    och blev cykliska likt träden och växterna
    då ni förlade er andlighet till språket.
    Men ändå. Hur ofta förförde ni inte
    med den kärlekskonst ni lärt er
    en spegel
    med falska ord.

    ◾

    Poeta e obra

    Linnea Axelsson é uma poeta sami-sueca nascida em Jokkmokk, na região norte da Suécia. Estreou na poesia com Ædnan (2018), uma epopeia lírica que narra a história das várias gerações de duas famílias Sami, dos anos 1900 até hoje. Único povo indígena da Europa — o território Sápmi coincide com áreas da Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia — os Sami tem sua história marcada pela luta pela manutenção de suas terras, modos de vida, línguas e memórias. O poema acima é retirado do poemário mais recente de Axelsson: Sjaunja (2024). O nome vem de uma área pantanosa do norte da Suécia, uma das maiores reservas naturais do país, onde povos Sami até algumas décadas atrás estabeleciam suas vilas com as características criações de renas. O eu-lírico destes poemas retorna a esse território hoje desabitado por humanos, mas povoado de animais, vegetais e memórias das gerações mais antigas. Sua voz se mistura à de três entidades da mitologia Sami — as deusas Uksáhkká, Sáráhkka e Juoksáhkká — e da própria natureza. A língua sueca se mistura à língua Sami e reflete sobre o que cada uma delas permite expressar. A obra poética de Axelsson, tanto em Ædnan quanto em Sjaunja, é um belíssimo exercício na escrita de corpos-território. A temática gira em torno de como as memórias dos humanos são herdadas através das gerações e com elas se movem geograficamente; mas, ao mesmo tempo, impregnam os territórios por onde passam, assim como são impregnadas por eles.

    1. Título retirado de um poema de John Donne, que significa algo como “o tolo/leigo/bobo da natureza”. ↩︎
    12 setembro, 2025

  • liliana ancalao

    quando morrer terei que cruzar o rio

    “Podem disparar, já estou
    acostumado a morrer”
    (de um relato oral)

    quando morrer terei que cruzar o rio
    que cão me servirá de guia se não tenho
    um cão magro que farejará minha covardia
    irá ao meu lado
    e a velha estará na balsa
    lhe entregarei duas pedras lapidadas
    para que me atravesse
    as pedras arrancadas pela raiz
    da minha garganta
    do meu estômago
    crescidas nas dores
    nos gritos que não pude gritar
    quando se arregalavam os meus olhos
    e eu fingia que vivia

    –

    lhe entregarei essas pedras
    e certamente já não
    haverá lágrimas
    porque não pude descobrir o segredo desta vida
    porque fui
    atrás dos fantasmas
    em busca de tramas
    e aranhas
    e cântaros
    e folhas

    saberá a velha reconhecer seu valor?

    subiremos com o meu cão
    a balsa deslizará pela tarde
    em direção ao oeste

    –

    chegaremos
    e tem que estar ali a minha irmã mais nova
    tem que estar
    não pode a morte ser um nada para um pássaro
    para quem já pintou com pinceis o fogo

    ela terá cicatrizes visíveis nos olhos
    seus olhos ainda mais certeiros
    me revirarão
    até tirar de mim os espinhos
    me desenhará no rosto com seus dedos
    uma pegada de avestruz

    o fogo arderá sobre pedras azuis
    comeremos corações palpitantes
    e minha irmã pintará um kultrún1 no ar
    com o sangue

    –

    depois não saberei
    se sou um cavalo
    ou um arquejo
    se o vento é uma trutruka2

    e sairemos a galope
    esparramando as estrelas do rio
    e no movimento circular
    saberei de vez
    o que é ser um guerreiro que corre livre em direção à morte
    que visões lhe ardiam

    –

    retornaremos ao mallín
    e haverá gente ao redor do fogo
    as panelas escurecidas e a lua
    e cada folha dos álamos brilhando

    então me lembrarei
    deles tão longe
    e morrerei de novo

    dos bairros planos de vivendas
    crescendo em vertigem
    na cidade com horizonte
    as bolsas de nylon e as estrelas ali
    entre os cabos de iluminação pública

    ◾

    cuando me muera deberé cruzar el río

    “Disparen nomás, estoy
     acostumbrado a morir”
    (de un relato oral)

    cuando me muera deberé cruzar el río
    qué perro hará de guía si no tengo
    un perro flaco que olerá mi cobardía
    irá a mi lado
    y estará la vieja en la balsa
    le entregaré dos llankas
    para que me cruce
    las piedras arrancadas de cuajo
    de mi garganta
    de mi estómago
    crecidas en los dolores
    en los gritos que no pude gritar
    cuando se agrandaban mis ojos
    y hacía que vivía

    –

    entregaré esas piedras
    y no habrá más
    seguro lágrimas
    porque no pude encontrarle el secreto a esta vida
    porque me fui
    detrás de los fantasmas
    buscando tramas
    y arañas
    y cántaros
    y hojas

    ¿reconocerá la vieja su valor?

    subiremos con mi perro
    la balsa se deslizará en la tarde
    hacia el oeste

    –

    arribaremos
    y tiene que estar allí mi hermana menor
    tiene que estar
    no puede ser la muerte una nada para un pájaro
    para quien ha pintado con pinceles el fuego

    ella tendrá cicatrices visibles en los ojos
    sus ojos más certeros aún
    hurgarán en mí
    hasta sacarme las espinas
    me dibujará el rostro con sus dedos
    una huella de choique

    arderá el fuego sobre piedras azules
    comeremos corazones palpitantes
    y mi hermana pintará un kultrún en el aire
    con la sangre

    –

    después no sabré
    si soy un caballo
    o un resuello
    si es el viento una trutruka

    y saldremos galopando
    a desparramar las estrellas del río
    y en el movimiento circular
    sabré de una vez
    qué es ser un guerrero que corre libre hacia la muerte
    qué visiones lo ardían

    –

    regresaremos al mallín
    y habrá la gente alrededor del fuego
    las ollas tiznadas y la luna
    y cada hoja de los álamos brillando

    entonces me recordaré
    de ellos tan lejos
    y moriré de nuevo

    de los barrios planes de vivienda
    creciendo en vértigo
    en la ciudad con horizonte
    las bolsas de nylon y las estrellas allí
    entre los cables del alumbrado público

    ◾

    feichi lali mulen ñi nontual katrutuleufun

     “Tralkaen,
    rüpülen iñche laken”

    feichi lali mülen ñi nontual katrütuleufün
    chem trewa ngiyulaenew, nielan trewa
    trongli trewa nümüalu ñi llükanten
    amuay ina inche
    kushe müleay nontuwe mew
    eluafiñ epu llanka
    ñi nontuaetew
    ti pu kura folilentuel
    ñi kütikun mew
    ñi pütra mew
    ifümüchikekura kutranpiwkelelu
    wirarün pepi wirarünoel
    feichi ñi pu nge yifüingu
    ka inche koilatufun ñi mongen

    –

    elutukuafiñ tüfa
    yom nielaay chem no rume
    mupiñ kechi pu külleñu
    pepi pelafilu ñi llumümel ta ti mongen
    amulu
    pu alwe ñi furi mew
    kintualu pu düwen
    pu lalün
    pu metawe
    pu tapül

    falilulüay kushe ?

    prayu ñi trewa iñchiu
    nontuwe pinguzay rupanantü
    ngulu mew

    –

    fentepuyu
    müley ñi müleael ñi pichilamngen tie mew
    müley ñi müleael
    ti lan pepi ngelay kiñe chem no rume ti kiñeishim
    iney wiri kütral

    fey nieay pu pefalañken pu nge mew
    yom pu refnge
    kintuayngu inche mew
    entuenew pu wayun
    kolotuwüenew ti pu changüll mew
    kiñe choikepünon

    üiay kütral wente kallfükekura
    winüngkü piwketuyu
    mollfün mew inche ñi lamngen wiriay
    kiñe kultrun ankawenu

    –

    feymew kimlayan
    kiñe kawellungeli
    ka kiñe neyüngeli
    kurufngele kiñe trutruka

    tripaayu wirafülu
    püdümlu leufü ñi puwangelen
    ka awün mew
    kimuan kiñetu
    chem ngey ngelu kiñe kona leflu kisungen lan mew
    chem perimontu iüfueyew

    –

    wiñoyu mallin mew
    kütral mew niey ti che
    pu kuyulchalla ka küyen
    pu alamo ñi filltapül wilüfülu

    feymew konümpafiñ
    fentren kamapu
    latuan

    pu barrio rukawe
    tremlu uyülonkon mew
    waria afpun mapu mew
    pu nylonwallka ka pu wangelen tie mew
    pu cable kompuchepelomtuwe

    Poeta e obra

    Liliana Ancalao (n. 1961) é uma poeta e escritora mapuche. O poema acima é retirado do livro Resuello (2019), que reúne poemas escritos em espanhol e mapudungun, e alguns ensaios escritos entre 2005 e 2014. Em um dos ensaios deste livro, intitulado “O idioma silenciado”, Ancalao escreve sobre a relação com a língua materna: “O mapudungun é o idioma de recuperação do orgulho e de reconstrução da memória”. Forçadas a substituir a “língua da terra” – significado de mapudungun – pelo espanhol, as gerações anteriores foram deixando de passá-la adiante, seja por esquecimento, vergonha ou medo. A escrita poética de Ancalao é assim um exercício de reconexão com a língua materna e, através dela, com a própria história. Com a história recente de sua cidade natal, Comodoro Rivadavia, onde a existência dos corpos-território tem sido marcada pela exploração do petróleo. Mas também com a história ancestral dos mapuche, “gente da terra”, e sua cosmovisão. É o que ela define como “oralitura”, usando um termo proposto pelo poeta mapuche Elicura Chihuailaf. No ensaio “Oralitura, uma opção pela memória”, da mesma coletânea, Ancalao descreve: “A oralitura como expressão artística de nossa cosmovisão marca uma continuidade cultural entre o que fomos e o que somos hoje”.

    Uma coletânea de textos de Liliana Ancalao, juntamente com uma bela entrevista, foi publicada em português com o título Oralitura pelo coletivo Capiranhas do Parahybuna, e disponibilizada gratuitamente como e-book neste link: https://medium.com/adobra/oralitura-cole%C3%A7%C3%A3o-de-textos-de-liliana-ancalao-54ce3a3b6256 

    1. Nota do original: Instrumento ritual de percussão. ↩︎
    2. Nota do original: Instrumento aerófono. ↩︎
    9 maio, 2025

  • joséphine bacon

    Em algum lugar
    No Nutshimit
    Estou em casa
    Sem endereço certo
    Minha rua se chama os caminhos
    Por onde se carregam as embarcações
    Amanhã vou subir a correnteza
    Em busca das mensagens
    Gravadas nos bastões
    Em algum lugar
    No Nutshimit
    Em algum lugar
    A grandeza
    Da Terra

    ◾

    Uiesh
    Nutshimit
    Nitshinat nititan
    Apu atshitashunashtet
    Anite epian
    Nimeshkanam
    Pakatakan ishnikateu
    Uapaki nika akutueshtinuain
    Nika natain nitshissinuatshitakana
    Uiesh
    Nutshimit
    Uiesh
    Eshpitashkamikat
    Assi

    ◾

    Quelque part
    Dans le Nutshimit
    Je suis chez moi
    Sans adresse réelle
    Ma rue s’appelle chemin de portage
    Demain je remonterai la rivière
    Retrouver mes bâtons à message
    Quelque part
    Dans le Nutshimit
    Quelque part
    La grandeur
    De la Terre

    ◾

    Poeta e obra

    Joséphine Bacon nasceu em 1947 em Pessimit, reserva indígena Innu no Quebec. É poeta, tradutora e documentarista, com uma dezena de livros publicados. O poema aqui traduzido está no seu livro mais recente, Uiesh / Quelque part (2018), pelo qual recebeu o Prêmio dos Bibliotecários do Quebec e o Indigenous Voices Awards em 2019. Bacon publica seus poemas em edições bilíngues, em innu-aimun, sua língua materna, e francês, língua que foi forçada a aprender no internato obrigatório para crianças indígenas onde viveu dos cinco aos 19 anos.
    Neste poema, Bacon nos apresenta o conceito de Nutshimit, um lugar físico e metafísico que remete à ideia de corpo-território. Em um dicionário francês/innu-aimun, Nutshimit se descreve como um advérbio de lugar, que significa “dans le bois, en forêt, à l’intérieur des terres” — na mata, na floresta, no campo.1 A palavra não nomeia necessariamente um território específico, mas um território emocional e espiritual que contrasta com as paisagens urbanas que Bacon, em um outro poema, descreve como “ruas sem horizonte”.
    “Bâtons à message”, os bastões de mensagem no poema, se referem a uma forma de comunicação utilizada por povos originários, na qual se entalham ou pintam símbolos em pedaços de madeira que, através de um mensageiro, percorrem espaço e tempo até chegar a seus destinatários. Ir de encontro a esses bastões significa portanto ir em busca dessas mensagens ancestrais que ficaram no Nutshimit, em algum lugar.

    1. https://dictionnaire.innu-aimun.ca/ ↩︎
    25 abril, 2025

  • jessie kleemann

    a neve

    qanneq

    embranquece e te cega

    sangra e derrete

    até congelar


    até



    ranger a dor do frio ser



    você pensa sal
    neve preta e branco o mar
    no cinza e vermelho de que cor é

    esse algo num pequeno planeta azul?

    ◾

    sneen

    qanneq

    det hvider ud og gør dig blind

    det bløder og smelter

    indtil det fryser


    til



    kuldevæsens smerte knager



    tænker du salt
    snort sne og havet hvidt i
    gråt og rødt hvilken farve er det

    dette noget i en lille blå planet?

    ◾

    Poeta e obra

    Jessie Kleemann é uma multiartista groenlandesa cuja obra se estende por várias linguagens — poesia, vídeo, performance, instalações. Sempre central é a temática da relação com o território, o Ártico: seu passado e presente colonial, a exploração de seus recursos, a identidade indígena, a solastalgia diante de uma paisagem cada vez mais ameaçada pelo contexto atual de catástrofes climáticas. O poema acima é retirado do livro Arkhticós Dolorôs (2021), que foi nomeado ao prêmio de literatura do Conselho Nórdico em 2022. É um livro multilíngue, que mistura o groenlandês, o inglês e o dinamarquês sem que haja tradução entre estas línguas. A experiência de leitura é assim marcada pela opacidade que reflete a própria experiência dos corpos-território que habitam os entre-lugares pós-coloniais.

    21 fevereiro, 2025

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